Sala de Espera

I

 

Escrevo debruçado no pára-peito da janela do terceiro andar.

Comungo com o céu, com os pingos da chuva e com as andorinhas o meu silêncio.

Mas minha alma não está sentada numa cadeira de balanço.

Transita inquieta por um mundo de contradições:

 

Aguardo pelo próximo cliente enquanto penso na dor da minha mãe.

Ela nunca esteve nessa sala de espera…

Certas dores, com o tempo, não doem mais; acho.

Estranhamente, tornam-se serenidade.

 

E me diz com sorriso entreaberto: ‘hoje Deus falou comigo’.

Como? – pensei incrédulo.

‘Bem no banco da igreja enquanto esperava a minha vez!’.

Depois ela me falou do almoço, das aventuras dos netos e da boa noite de sono.

E minha alma ficou mais inquieta ainda, diante do céu, da chuva, das andorinhas:

Onde está o meu silêncio? Minha paz, onde está?

 

II

 

Escuto barulhos.

È alguém que chega.

Espero dois minutos, respiro, refaço-me.

Abro a porta, mas ainda não há ninguém.

A não ser esse barulho… Esse barulho que vem de dentro, lá de dentro, bem de dentro,

E que mexe em vidros, plásticos, entulhos e ferrugens.

 

Barulhos-Incomodação-Silêncio-Coragem-Ação-Tempo-Um Jardim-Encontro.

Itinerário da transformação.

Repito:

Barulhos-Incomodação-Silêncio-Coragem-Ação-Tempo-Um Jardim-Encontro.

 

III

 

A sala de espera tem de ser um espelho mágico.

Dispenso formalidades.

Apenas água e gente.

Você chega, entra, senta e espera. Simples.

Os pensamentos também: chegam, entram, sentam e esperam…

Ah… Um copo com água! Que preço tem?

Um gole d’água e todas as feras começam a ninar.

 

Depois acordam de novo, mas agora com outra sede.

Uma sede verdadeira.

É a sede do Jardim.

A sede do Encontro.

A sede do Ser.

 

IV

 

À noite, ao me despedir do último, volto a ficar só.

Mas solidão é ilusão

Ilusão não dura…

 

Então, pego lápis e agenda.

Ninguém hoje faz aniversário.

Mas ligo assim mesmo.

 

Não temos data para surpresas. Liguei para mim.

Não estou só.

Deixei tocar dez vezes.

Dez vezes e uma voz mansa lá de dentro atende:

Espera… Saiba esperar. Espera… Espera… Espera…!

 

V

 

Loucura é não correr riscos por medo de erros e julgamentos.

Ter pressa com as coisas é o mesmo que ter pressa com a vida.

A sala de espera é um ótimo lugar para você encontrar com você.

Também o banco da igreja, a vida pela janela, o degrau de uma escadaria. 

É quando Deus nos fala! Isso é o que importa.

Porque essas coisas são como notícia boa:

Para quem espera e contempla, pode ser até mesmo o arroto do bebê o motivo de felicidade.

 

VI

 

Enquanto atendo um cliente ouço vozes do lado de fora.

O próximo já chegou.

Conversa sozinho? Será?

 

Minha curiosidade aumenta para daí 10 minutos constatar e encontrá-lo

Com livro no colo e fones de ouvido.

Às vezes lia, às vezes cantava, às vezes silenciava, às vezes rezava.

E eu concluía: Isso que ele faz é sua melhor terapia!

 

VII

 

E existem as faltas…

Fico esperando aquele que não vem.

Quantas vezes isso se repete na vida? Esperamos pelo que não vem!?

E fica tão vazia a sala de espera. E fica tão vazio nosso coração.

Tão nada que dá para se pensar em fazer poesia.

Tão nada que Deus me fala: menino, coloca aqui um lembrete nesse painel.

De dizeres simples pra fome da alma.

E coloquei: acenda a Luz, se sentires escuro.

 

 

VIII

Aproveitei para deitar de barriga para cima no chão frio.

Esse barulho de chuva rega minha memória.

Lembrei do garotinho que fui. Futebol, música, escola e quintal de terra.

 

Amarrei ki chute de todo jeito: tradicional, com cadarço envolvendo a sola, ou amarrando o tornozelo.

Na música conheci o piano aos sete, violão aos dezesseis, guitarra aos dezessete, gaita aos vinte e dois, e a saudade disso tudo aos trinta e poucos.

A escola me levou à psicologia, que agora me levou a esse chão.

 

E do chão, – donde se coloca os pés para alçar vôo – ao mais importante:

O Reino dos Céus, esse Sagrado Espaço aqui dentro de mim.

 

IX

 

Todo mundo traz “suas crianças” para a terapia.

Não seria diferente o meu caso.

Todos os dias, subjetivamente, eu a trago em minhas conversas. Herança da vivência.

E uma coisa é a mais certa: não vem do diploma cada cura, mas da criança reencontrada.

Do Reino.

Ora, do garotinho que não cresceu.

 

X

 

Hoje sou eu na sala de espera do lado de fora d’alma.

Espero por mim mesmo.

E somente me encontro numa psicose de identificação:

Tem um quintal de terra dentro de mim.

Sou a chuva, a andorinha e o céu.

Sou o outro que entra e chora.

Sou a cura que vem da natureza e a dor.

O cuidado e o cuidador.

Um menininho que sorri.

A contradição.

O barro e as estrelas.

Sou a sala de espera que espera por alguém que não sabe se vem.

Uma saudade, um tênis démodé, um violão dedilhado.

A música no fone de ouvido.

E mais que tudo, sou do silêncio o próprio silêncio.

A vida que sempre existiu.

 

XI

 

Hoje Deus falou comigo.

Na sala de espera do meu coração.

No pára-peito da janela, enquanto esperava a minha vez.

 

Tantos me atenderam. Cada um trouxe uma criança.

 

E reencontramos um Paraíso Perdido.

Depois, almocei batatinha cozida com salada de pepino e tomate.

Brinquei com meus filhos.

Aventurei pelos céus em chuva.

Ajudei o sol a nascer para muitos.

E dormi uma boa noite de sono e de bons sonhos.

 

Nos sonhos, uma cadeira de balanço transitava inquieta à procura de minha alma.

Ela (a cadeira) só queria descansar.

E acordei sereno… Estranhamente!

Com uma dor que já não dói mais:

A dor de outrora, a voz do deserto, de onde agora eu escrevo para mim mesmo.

Sala de Espera

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